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2:49, pausa, volta a dormir

São duas e quarenta e nove da manhã. Um longo barulho interrompe meu sono e perturba minha inquietude. Do meu lado, um estranho que escolhi amar, dorme. O vento está rápido e tão marcante quanto o agitado sonho que meu companheiro parece ter. Estou sendo esmagada, aos poucos, pelo fino lençol que cobre meu corpo. Já não me atrapalha mais o peso do sono nas minhas pálpebras, tampouco o som do silêncio. Não consigo dormir. Tive um longo dia comum.  Todo meu corpo está cansado. Por maior que seja a minha vontade de dormir, tenho dificuldades em me desconcentrar de todo o resto. Os pratos sujos na pia da cozinha gritam. Dos vidros sebosos do boxe ainda escorrem gotas do meu banho recente. Os fios soltos da barra mal feita da cortina chacoalham com uma leve corrente de ar que invadiu o quarto e tocou meu rosto, esfriou. Levanto, o assoalho frio é convidativo, sento-me no curto corredor e especulo sobre futuros que nunca aconteceram. Soa uma aguda buzina de caminhão que ecoa no meu estôm...

Perfil

Sempre foi muito charmosa, nunca chegou a ser bonita. Com bom senso de humor e de organização,não tinha um nome fixo. Os peitos eram macios, pequenos, levemente arrebitados. Os cachos negros escoriam na cintura e caiam-lhe muito bem. As unhas eram curtas para não correr riscos. Era muito branca para ser negra, muito morena para ser branca, pouco amarela para ser asiática, nada jeitosa para ser mulata, era tudo e nada, meio manchada. A boceta não a deixava mentir sobre seu ofício. Usava um perfume forte demais para o verão, enjoativo e marcante . Os olhos caídos e sorridentes acentuavam sua confusa cara cansada. As pernas, compridas e suculentas, eram sua principal armadilha. Atendia telefones e respondia mensagens muitas vezes ao dia, todos os dias. Das perguntas já não esperava nada novo. Há muito respondia 27, quando perguntada sobre sua idade, optou por não envelhecer. Era imune aos olhares tortos das que se achavam mais dignas, ou mais mulheres que ela. Aprendeu a ser atraentem...

Homem das cavernas

Às vezes lembrava-se da infância, era até que um refúgio bom : Pegava água no rio, com uma lata velha da Coral, todos os dias. Corria com os irmãos. As vizinhas ricas compravam bonecas de pano - que ele roubava de suas irmãs - e assim conseguia comprar doces de vez em quando. Pulava o muro do quintal para roubar mangas de Dona Serafina, que fingia não sentir falta e sempre dava mais frutas depois. Sua mãe, empregada doméstica, teve sorte com seus empregadores: Dr. Romeu e Dona Marta doaram a biblioteca usada de seus filhos - agora grandes- o que estimulou muito os estudos dele e de seus 3 irmãos. Formaram-se todos em medicina no final das contas, ele não. Em uma data comemorativa de Livramento, levava a irmã em um carrinho de mão e, ocupado com a felicidade que o sorriso dela lhe proporcionava, não notou a pedra no caminho. Capotou, nas ruas de paralelepípedo, e viu o sangue escorrer pela testa de sua pequena protegida. Não via, mas demorou a esquecer o toque do fio de cobre que es...

Pedaço de casa

A luz só atravessava o buraco da fechadura ou pelas frestas da porta. Quase claustrofóbico, o quarto não tinha janelas. Os restos de um tapete de um metro quadrado cobriam a parte  livre do chão de tacos. Encostados na parede estavam o armário, a cama e uma mesa. O relógio, que marcava três e dez há dez anos, servia apenas como enfeite na parede bege descascada. Com suas portas revestidas por fotografias e sem puxadores, o armário guardava bolsas, mochilas, bolas, revistas, tudo, menos roupas. Uma máquina de costura ocupava metade da mesa de madeira no canto. O espaço destinado às gavetas estava ocupado por uma teia de aranha, sem aranha. Um plástico revestia a cama, apesar de opaco, não escondia a colcha do Corinthians que estava por baixo. A lâmpada, sem nenhum adorno, quando ligada deixava o ambiente laranja, laranja como o nariz de um urso de pelúcia, jogado num canto. Um quadro, com um cachorro toscamente pintado, está pendurado ao lado da porta. O lugar conta com ...

Consulta de rotina

Perdeu todo seu aspecto jovial para dois cadáveres: Um que o desejava e outro que o construiu. O velho, angustiado, surdo, esperava o médico e a morte. Estava cansado, não por uso excessivo do corpo, mas da vida. Precisava de muito tempo pra falar, caminhar um trajeto curto, entender o que lhe era perguntado, não tinha tempo. Seu filho, sentado ao lado, sentia-se na obrigação de acompanhar o pai, apesar da pouca vontade. Desenrolava uma conversa que nada dizia, silenciosa. Estava numa visita de rotina ao urologista e estranhou a presença feminina recém instalada na poltrona ao lado. "Você também vai se consultar?". Pergunta indignado, indelicado e objetivo - sabia das esquisitices do mundo, mas aquela moça era sua incógnita. "Não, vim buscar receita para o meu avô. Ele não tem mais condições de vir." Responde baixo, pacientemente e delicadamente. "COMO?" Exige o velho surdo que ela repita. Não nota as lágrimas invisíveis que se formam no rost...

Meu corpo, meu amor

Começou nova, mas tarde em uma profissão em que 30 é idade para se aposentar. Estava sem perspectivas e acreditava que vender o corpo era a única opção para quem não tem mais opção nenhuma. A rotina era mais cansativa do que a dos outros. Repetia, no mínimo, 50 vezes a mesma coisa, todos os dias de toda semana em todos meses do ano inteiro. Convencia muito menos da metade dos que ouviam-na. Considerava-se uma ninguém, com a esperança de construir algum caráter com o dinheiro. Às vezes, perguntava-se como a vida escolhia o destino de cada um. Se tivera azar ou sorte em ser e viver o que era, ainda não sabia. De qualquer forma não podia se queixar, tinha como se virar, tinha beleza suficiente para exigir um extra dos clientes. A boceta ardida era um contra, seu ponto fraco, logo sua fonte de renda... Cristina se apresentava como Marcela, a puta perfeita. Fazia tudo. Sentia-se bem em ser objeto de desejo para alguém, excitava-a. No começo tinha medo. - Você sabe que um dia vai ser f...

O som do silêncio

Sempre dormi com o ventilador ligado. Acordei com os gritos de minha mãe e , mais tarde, com os de minha esposa. Vivi com o som da cidade. Estamos em tempos difíceis, secos, de racionamento de energia, mas eu não ligo. Só quero dormir. Dia longo. O ventilador é uma canção maravilhosa para mim. Em um estalo parou e nada liga "Merda", é a porra do apagão. Minha esposa não notou, dorme. Percebo o que realmente é o silêncio. A respiração de Camila é alta, o estalo dos tacos no chão é alto, o silêncio é alto. Vou  até a cozinha, a luz não acende, mas o interruptor estala, a porta da geladeira, a tampa da garrafa, a cadeira em que esbarro; Ouço meus movimentos, todos. Nada é mais alto, porém, que os gritos, meus pensamentos gritam. Eu quero dormir, mas o silêncio é ensurdecedor. Traz a tona coisas que eu não lembrava existir e que me incomodam.  Já tem uns 2 anos que a Marjorie tá aqui, vagabunda.  Por que Camila deu abrigo pra prima?  Como isso me atormenta. Ela t...