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Personalidade

Era um mendigo, todo fodido, mas ele sorria. Outrora fora um homem ou menino, mas hoje... Já não sabe mais o que é. Nome não tem. Teve algo de belo que tornou lento, mas certo, o caminho para a desgraça em que caíra. Longa história, fica para próxima. Pediu-me, como a todos os pedestres anteriores, dinheiro: - Não vou mentir não. É pra cachaça, se você me der o dinheiro ele passa a ser meu e o que é meu eu gasto como bem quiser. Vai dar? -Você me pegou num dia ruim Abri a carteira, não achei nada, sabia que tinha dinheiro em algum lugar. Achei um bolinho no bolso que não me incomodei em conferir, só entreguei. Peguei na mão dele e, com ternura e sinceridade, disse: -Espero que te faça muito feliz. -Vai me completar, Deus abençoe, moço. As pessoas acreditam que a benção de Deus acolhe e afaga a alma de quem parece devastado. Desejam com falsidade ou sem intenção, na esperança de que soe como lisonjeio. Continuei andando. Apesar de ter nome, endereço, CEP, te

Saudade

A casa vazia ecoava sua respiração. Cada lugar que pisava trazia à lembrança situações e problemas que teve em distintos momentos. Sentia-se confuso com a falta que memórias inventadas faziam. Estava ligado àquela casa por situações queridas, mas que não sabia até onde eram reais. Com a recente perda de sua companheira, resolveu que não era mais justo consigo mesmo continuar num lugar tão grande e apertado como aquele, continuar tão sufocado. Mudou-se de casa, de jeito, hábitos, de vida. Pensou em se matar, em fugir, achou que a perda de identidade momentânea dava-se devido à privação que se obrigou a passar. Tinha plena consciência de que sua carência estava transformando-o em um ser irreconhecível. Seguia remoendo tudo o que deixou passar, tudo o que não fez e tudo que se arrependeu. Era perda de tempo, sabia, mas de certa forma, acreditava que alguém acompanhava seu esforço em manter a mulher viva e admirava. Não queria mais ser notado, não queria mais sentir, limitava-se a se al

2:49, pausa, volta a dormir

São duas e quarenta e nove da manhã. Um longo barulho interrompe meu sono e perturba minha inquietude. Do meu lado, um estranho que escolhi amar, dorme. O vento está rápido e tão marcante quanto o agitado sonho que meu companheiro parece ter. Estou sendo esmagada, aos poucos, pelo fino lençol que cobre meu corpo. Já não me atrapalha mais o peso do sono nas minhas pálpebras, tampouco o som do silêncio. Não consigo dormir. Tive um longo dia comum.  Todo meu corpo está cansado. Por maior que seja a minha vontade de dormir, tenho dificuldades em me desconcentrar de todo o resto. Os pratos sujos na pia da cozinha gritam. Dos vidros sebosos do boxe ainda escorrem gotas do meu banho recente. Os fios soltos da barra mal feita da cortina chacoalham com uma leve corrente de ar que invadiu o quarto e tocou meu rosto, esfriou. Levanto, o assoalho frio é convidativo, sento-me no curto corredor e especulo sobre futuros que nunca aconteceram. Soa uma aguda buzina de caminhão que ecoa no meu estômago

Perfil

Sempre foi muito charmosa, nunca chegou a ser bonita. Com bom senso de humor e de organização,não tinha um nome fixo. Os peitos eram macios, pequenos, levemente arrebitados. Os cachos negros escoriam na cintura e caiam-lhe muito bem. As unhas eram curtas para não correr riscos. Era muito branca para ser negra, muito morena para ser branca, pouco amarela para ser asiática, nada jeitosa para ser mulata, era tudo e nada, meio manchada. A boceta não a deixava mentir sobre seu ofício. Usava um perfume forte demais para o verão, enjoativo e marcante . Os olhos caídos e sorridentes acentuavam sua confusa cara cansada. As pernas, compridas e suculentas, eram sua principal armadilha. Atendia telefones e respondia mensagens muitas vezes ao dia, todos os dias. Das perguntas já não esperava nada novo. Há muito respondia 27, quando perguntada sobre sua idade, optou por não envelhecer. Era imune aos olhares tortos das que se achavam mais dignas, ou mais mulheres que ela. Aprendeu a ser atraentemente

Homem das cavernas

Às vezes lembrava-se da infância, era até que um refúgio bom : Pegava água no rio, com uma lata velha da Coral, todos os dias. Corria com os irmãos. As vizinhas ricas compravam bonecas de pano - que ele roubava de suas irmãs - e assim conseguia comprar doces de vez em quando. Pulava o muro do quintal para roubar mangas de Dona Serafina, que fingia não sentir falta e sempre dava mais frutas depois. Sua mãe, empregada doméstica, teve sorte com seus empregadores: Dr. Romeu e Dona Marta doaram a biblioteca usada de seus filhos - agora grandes- o que estimulou muito os estudos dele e de seus 3 irmãos. Formaram-se todos em medicina no final das contas, ele não. Em uma data comemorativa de Livramento, levava a irmã em um carrinho de mão e, ocupado com a felicidade que o sorriso dela lhe proporcionava, não notou a pedra no caminho. Capotou, nas ruas de paralelepípedo, e viu o sangue escorrer pela testa de sua pequena protegida. Não via, mas demorou a esquecer o toque do fio de cobre que es

Pedaço de casa

A luz só atravessava o buraco da fechadura ou pelas frestas da porta. Quase claustrofóbico, o quarto não tinha janelas. Os restos de um tapete de um metro quadrado cobriam a parte  livre do chão de tacos. Encostados na parede estavam o armário, a cama e uma mesa. O relógio, que marcava três e dez há dez anos, servia apenas como enfeite na parede bege descascada. Com suas portas revestidas por fotografias e sem puxadores, o armário guardava bolsas, mochilas, bolas, revistas, tudo, menos roupas. Uma máquina de costura ocupava metade da mesa de madeira no canto. O espaço destinado às gavetas estava ocupado por uma teia de aranha, sem aranha. Um plástico revestia a cama, apesar de opaco, não escondia a colcha do Corinthians que estava por baixo. A lâmpada, sem nenhum adorno, quando ligada deixava o ambiente laranja, laranja como o nariz de um urso de pelúcia, jogado num canto. Um quadro, com um cachorro toscamente pintado, está pendurado ao lado da porta. O lugar conta com um t

Consulta de rotina

Perdeu todo seu aspecto jovial para dois cadáveres: Um que o desejava e outro que o construiu. O velho, angustiado, surdo, esperava o médico e a morte. Estava cansado, não por uso excessivo do corpo, mas da vida. Precisava de muito tempo pra falar, caminhar um trajeto curto, entender o que lhe era perguntado, não tinha tempo. Seu filho, sentado ao lado, sentia-se na obrigação de acompanhar o pai, apesar da pouca vontade. Desenrolava uma conversa que nada dizia, silenciosa. Estava numa visita de rotina ao urologista e estranhou a presença feminina recém instalada na poltrona ao lado. "Você também vai se consultar?". Pergunta indignado, indelicado e objetivo - sabia das esquisitices do mundo, mas aquela moça era sua incógnita. "Não, vim buscar receita para o meu avô. Ele não tem mais condições de vir." Responde baixo, pacientemente e delicadamente. "COMO?" Exige o velho surdo que ela repita. Não nota as lágrimas invisíveis que se formam no rost

Meu corpo, meu amor

Começou nova, mas tarde em uma profissão em que 30 é idade para se aposentar. Estava sem perspectivas e acreditava que vender o corpo era a única opção para quem não tem mais opção nenhuma. A rotina era mais cansativa do que a dos outros. Repetia, no mínimo, 50 vezes a mesma coisa, todos os dias de toda semana em todos meses do ano inteiro. Convencia muito menos da metade dos que ouviam-na. Considerava-se uma ninguém, com a esperança de construir algum caráter com o dinheiro. Às vezes, perguntava-se como a vida escolhia o destino de cada um. Se tivera azar ou sorte em ser e viver o que era, ainda não sabia. De qualquer forma não podia se queixar, tinha como se virar, tinha beleza suficiente para exigir um extra dos clientes. A boceta ardida era um contra, seu ponto fraco, logo sua fonte de renda... Cristina se apresentava como Marcela, a puta perfeita. Fazia tudo. Sentia-se bem em ser objeto de desejo para alguém, excitava-a. No começo tinha medo. - Você sabe que um dia vai ser f

O som do silêncio

Sempre dormi com o ventilador ligado. Acordei com os gritos de minha mãe e , mais tarde, com os de minha esposa. Vivi com o som da cidade. Estamos em tempos difíceis, secos, de racionamento de energia, mas eu não ligo. Só quero dormir. Dia longo. O ventilador é uma canção maravilhosa para mim. Em um estalo parou e nada liga "Merda", é a porra do apagão. Minha esposa não notou, dorme. Percebo o que realmente é o silêncio. A respiração de Camila é alta, o estalo dos tacos no chão é alto, o silêncio é alto. Vou  até a cozinha, a luz não acende, mas o interruptor estala, a porta da geladeira, a tampa da garrafa, a cadeira em que esbarro; Ouço meus movimentos, todos. Nada é mais alto, porém, que os gritos, meus pensamentos gritam. Eu quero dormir, mas o silêncio é ensurdecedor. Traz a tona coisas que eu não lembrava existir e que me incomodam.  Já tem uns 2 anos que a Marjorie tá aqui, vagabunda.  Por que Camila deu abrigo pra prima?  Como isso me atormenta. Ela tem pernas

Visceral

Não tem nada que me agrade mais do que pensar nele. Eu vejo a gente numa sala com janelas grandes. Não dizemos que nos amamos ou odiamos, não sentimos nada. Eu estou com calor, a presença dele faz isso. Discutimos sobre tudo um pouco, sobre nossos olhares. Ele tem uma boca linda, fico molhada só de pensar nela... Ele sorri, como se lesse meus pensamentos. Sai da cadeira e vem para o meu sofá. Faço do meu corpo um convite, que ele aceita. Apesar de querer tudo de uma só vez, começa pelas minhas coxas. Me senta em seu colo, me ajeita, me encara, me beija. Transamos devagar e rápido e pouco e muito. O nosso desejo faz com que a gente queira consumir ao máximo um ao outro, sentir tudo o que podemos nos dar. A gente cansa, não quer parar, mas cansa. Senta cada um em uma ponta do sofá. Ele fuma, eu olho. Por um longo tempo a gente só se olha, conversa nunca foi nosso forte. Ele então diz... Fernanda não sabe que ele ia dizer, acordou com o despertador. Queria mais, ele estava longe. S