Homem das cavernas

Às vezes lembrava-se da infância, era até que um refúgio bom:

Pegava água no rio, com uma lata velha da Coral, todos os dias. Corria com os irmãos. As vizinhas ricas compravam bonecas de pano - que ele roubava de suas irmãs - e assim conseguia comprar doces de vez em quando. Pulava o muro do quintal para roubar mangas de Dona Serafina, que fingia não sentir falta e sempre dava mais frutas depois.
Sua mãe, empregada doméstica, teve sorte com seus empregadores: Dr. Romeu e Dona Marta doaram a biblioteca usada de seus filhos - agora grandes- o que estimulou muito os estudos dele e de seus 3 irmãos. Formaram-se todos em medicina no final das contas, ele não.
Em uma data comemorativa de Livramento, levava a irmã em um carrinho de mão e, ocupado com a felicidade que o sorriso dela lhe proporcionava, não notou a pedra no caminho. Capotou, nas ruas de paralelepípedo, e viu o sangue escorrer pela testa de sua pequena protegida. Não via, mas demorou a esquecer o toque do fio de cobre que estalou algumas vezes em suas costas. Dormiu várias noites de barriga para baixo, não era forte o suficiente para aguentar a ardência dos vergões.
Moravam no fundo de um casarão, num cômodo com uma divisória no meio. O lugar que estava o colchão dele tinha um furo no telhado. Vendo o céu pensava na vida fora da terra, em ser astronauta ou se a lua era de queijo, como disse sua mãe uma vez. Não tinha eletricidade em casa, nem na cidade, velas eram caras e querosene também. Suas orações, antes de dormir, eram sempre para que não tivesse vontade de mijar. O céu escuro do interior somado ao silêncio da noite assustavam-no mais que o demônio. O medo de ser engolido pela escuridão era maior que a vontade de se levantar. Acordava fedendo, às vezes ainda molhado, mas graças à mancha amarelada em seu colchão seus irmãos nunca queriam dormir junto com ele, "mais espaço", sorria.
Sentia um vazio, comia para ver se conseguia preenche-lo, mas nunca teve certeza se era só fome, a comida era pouca para os 6 moradores da casa. Quando chovia, com os papéis de caixas de cigarro que juntava, fazia barquinhos e colocava-os na sarjeta. Ficava triste se a fragilidade do papel comprometia o trajeto, desmanchando o barco antes da metade do caminho. Tinha medo de, qualquer dia desses, derreter no meio de uma tempestade.

A transição também não era de se esquecer:

Por algum tempo ainda morou com a mãe, agora aposentada e com uma renda, pequena, mas fixa. Quando começou a sentir que era só um peso no bolso dela, saiu. Conseguiu morar por 6 meses na casa de uma namorada apaixonada. Trabalhou no cemitério e continuou a viver, apesar do desestímulo que o trabalho dava, é inevitável o fim que todos têm. Logo que saiu do emprego, deixou Livramento.
Passou por algumas pequenas cidades antes de se instalar na metrópole. Foi atropelado. Quando chegou ao hospital, quem deu assistência foi o irmão mais velho, depois disso nunca mais teve contato com a família. Não fazia muita questão de ter alguma coisa, fez menos ainda quando Luana o trocou por um homem que tomava banho todos os dias. Não eram mais barquinhos de papel que acabavam jogados na sarjeta, mas ele. Deixou os piolhos se mudarem para sua barba. Já estava acostumado a comer pouco, mas teve uma melhora, com "doações", alimentava-se até 3 vezes ao dia.

Acabava sempre voltando a si:

Não tinha um nome para chamar de seu. Há muito o havia esquecido. Vivia os dias que passavam, sem saber se ainda tinha muitos por vir. Lia - antes de se cobrir com eles - os jornais. Era bem informado. Alguns livros, esporadicamente, se desse sorte com o lixo. Vez ou outra assistentes sociais, ou os mocinhos dessa vida, vinham convencê-lo a tomar banho ou passar a noite em algum abrigo, se o frio fosse muito grande. Dormia em túneis, fechados na madrugada. Não tinha medo de nada, sentia-se seguro nas cavernas modernas, protegido dos caçadores de impostos, de obrigações ou de interesses. Ainda sentia medo de ser engolido pelo escuro, mas os postes, agora, estavam lá para salvá-lo. Para salvá-lo da sombra silenciosa que ele deixou se transformar.

Comentários

  1. Muito Bom! Estava perguntando-me quando o próximo post (este) viria!

    ResponderExcluir
  2. amiga, vamos lançar um livreto? como amo seus textos! putaquepariu! <3

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Não quero mais visitas do passado

Reconhecer | 1 dezembro 2021

I have no wish to continue living on survival mode