Meu corpo, meu amor

Começou nova, mas tarde em uma profissão em que 30 é idade para se aposentar. Estava sem perspectivas e acreditava que vender o corpo era a única opção para quem não tem mais opção nenhuma.

A rotina era mais cansativa do que a dos outros. Repetia, no mínimo, 50 vezes a mesma coisa, todos os dias de toda semana em todos meses do ano inteiro. Convencia muito menos da metade dos que ouviam-na. Considerava-se uma ninguém, com a esperança de construir algum caráter com o dinheiro. Às vezes, perguntava-se como a vida escolhia o destino de cada um. Se tivera azar ou sorte em ser e viver o que era, ainda não sabia. De qualquer forma não podia se queixar, tinha como se virar, tinha beleza suficiente para exigir um extra dos clientes. A boceta ardida era um contra, seu ponto fraco, logo sua fonte de renda...


Cristina se apresentava como Marcela, a puta perfeita. Fazia tudo. Sentia-se bem em ser objeto de desejo para alguém, excitava-a. No começo tinha medo.


- Você sabe que um dia vai ser feia, né?

- Você sabe que esse dia não é hoje, né?
- Eu posso fazer esse dia não chegar, sabia?
- Como?
- Te matando, deixo você forever young, que tal?
- ...
- To brincando, lindinha.

Com o passar do tempo, contava com a sorte. Tinha certeza que em um ponto de sua vida - entre os 20 e os 30 anos - já teria juntado dinheiro suficiente para parar. Com 23 não podia se aposentar, ainda não. Todas as coisas bonitas que viu da vida estava em livros ou músicas. Odiava contos de fadas. Sabia o chorume que escorria das pessoas se muito fossem pressionadas.


Quando Cristina, queria dinheiro para viver até o fim da vida numa casa simples, sozinha. Queria pintar, morar num lugar onde ninguém sabia do seu passado e nem se interessaria. Não queria felicidade, queria só poder ser ela mesma.

Quando Marcela, preocupava-se em estar bem vestida, com o dinheiro e com seu apetite, que era bem pouco para alguém com tanto trabalho. 
Cristina odiava Marcela, odiava a vida que uma impunha à outra e odiava a forma como era esquecida para que Marcela usasse seu corpo. Não negava, apesar de sua raiva, que sem Marcela não conseguiria chegar muito longe. Odiava o modo como as madames a olhavam.
Sentia-se suja, uma puta barata, é o que era. 

Demorou muito para perceber quão necessário é o papel da puta na sociedade. Demorou para notar que não exercia uma profissão indigna ou a última opção de quem não tem opção e que era a solução para a carência humana. O homem precisa de sexo para viver, ser bem humorado, para não viver sempre prestes a estourar por qualquer coisa, o homem é a origem dos problemas (de todos eles) e mais da metade seria resolvida com uma bela trepada. Um canal de evacuação do estresse. A vida não é um  jogo. Não, pelo menos, quando se trata de relacionamentos. Deveriam ser mais literais, independente do grau de afeto- claro, refletiu, algum charme às vezes é preciso, mas- deveria ser como é com as putas, o cliente diz, me chupa gostoso, e a moça chupa, simples assim, sincero assim.


Demorou, mas compreendeu. Só então se sentiu aliviada. Papel cumprido, achou sua dignidade, finalmente. Era alguém e importante, concluiu. Pode então se aposentar.

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