Consulta de rotina

Perdeu todo seu aspecto jovial para dois cadáveres: Um que o desejava e outro que o construiu.


O velho, angustiado, surdo, esperava o médico e a morte. Estava cansado, não por uso excessivo do corpo, mas da vida. Precisava de muito tempo pra falar, caminhar um trajeto curto, entender o que lhe era perguntado, não tinha tempo. Seu filho, sentado ao lado, sentia-se na obrigação de acompanhar o pai, apesar da pouca vontade. Desenrolava uma conversa que nada dizia, silenciosa. Estava numa visita de rotina ao urologista e estranhou a presença feminina recém instalada na poltrona ao lado.



"Você também vai se consultar?". Pergunta indignado, indelicado e objetivo - sabia das esquisitices do mundo, mas aquela moça era sua incógnita.
"Não, vim buscar receita para o meu avô. Ele não tem mais condições de vir." Responde baixo, pacientemente e delicadamente.
"COMO?" Exige o velho surdo que ela repita.

Não nota as lágrimas invisíveis que se formam no rosto contido da menina, não repara quanto machuca a neta ter um avô cada vez menos humano. A sala diminuía. Ia esmagando, aos poucos, a menina.
O velho levanta, assina uns papéis e, não sem dificuldade, retorna ao seu lugar. Invejava, secretamente, a dedicação no gesto da menina. Queria um filho, não o saco de ossos, culpa e obrigação que estava ao seu lado. Queria um neto daquele jeito, não o iphone que, com tanto orgulho, o filho ostentava. Tinha pouco tempo, muito querer.
A menina é atendida primeiro. Pega alguns exames de rotina, uma receita e se atrapalha um pouco com o médico que a confunde com mulher.
Na saída, chora um sorriso verde para a secretária e escorre pelo buraco da porta antes de ser esmagada por completo pela velhice.

O senhor sente falta de sugar a jovialidade da coisinha que vagou a poltrona. Repentinamente já ouvia bem, jogou o aparelho de surdez no chão.

"Pare de criancice papai."- resmunga o iphone.

Correu pela sala de 2 metros quadrados, voou pela janela. Sorriu, voltou a falar de acordo com a sua mente, não mais com sua idade. Sentiu a brisa, voltou, se sentou comportadamente ao lado da criança que o amou e admirou anos atrás.
Ela descia do 21 andar, na porta uma ambulância descia às pressas para garagem, ela não notou, sua vista estava nublada pela imagem do avó.

O homem morreu a espera do urologista, o avô a espera de sua neta, que de cega de saudade não viu o carro quando atravessou a via expressa.

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