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Ansiedade

Era Julho, eu acho. Foi uma sequência rápida: Mauricio me rodopiou, me jogou para trás,  nossos olhares cruzaram -o suficiente-, me puxou de volta e eu te amei ali, naquela troca. Nunca mais parei de te amar.  Não desenvolvemos o costume um do outro, não sei se um dia iremos, muito provável que não. A gente se fala, mas não sabe mais como é o beijo, o sorriso e o cheiro. O tempo pra ter memórias não aconteceu. Só para se ter vontade.  Tem quase uma década desse amor que não é.  Entre o total esquecimento e sonhos - que foram tão reais - você sempre existiu. Às vezes temo que ame a mim mesma, através da ideia que criei de você, que se confunde com os sinais de realidade que você passa quando existe. Um acalento diante de um sonho ruim e tudo volta. Confundo o oceano entre nós com o que carrego em mim, molhado, profundo, que tanto anseia pelo seu mergulho. Confundo sua indiferença com o resguardo de alguém indisponível a amar alguém tão disitante. Confundo su...

Percepções

Dos três partos, nenhum deixou marca mais profunda que a da entrega. Carrega no rosto linhas acentuadas e no pescoço uma corrente com três pingentes, um para cada filha. Ela tem cheiro de friagem e as costas curvadas pelo peso invisível de uma vida sem ruídos, cheia de gritos. É quase tão esguia como as estrias em suas costas, a mostra por um descuido com o uniforme. Apesar de não esboçar um sorriso, mesmo quando lhe é dito um delicado ‘obrigado’, o olho esquerdo sempre responde, ainda que sem querer, a qualquer interação - o tique nervoso a faz piscar quase que sem parar. A vontade de ajudar está sempre comprometida, não sei ao certo se por preguiça ou pelo peso de tantas pulseiras nos braços. Tem a voz devagar, parece puxada com muito esforço de um lugar de onde não deveria sair. Tenho a impressão de que cedo ou tarde escorrerá entre as catracas e desaparecerá, derretida pelo chão em que piso. O escuro dos cabelos misteriosamente reflete no vazio dos olhos e traz à tona o eco d...

Curto relato sobre um aniversário

Bernardo, 17 anos, roubava os colegas, mentia para os professores, enganava os pais. Bernardo, 28 anos, casou-se, foi pai e traiu a mulher. Tudo no mesmo ano. Bernardo, 35 anos, obrigou uma de suas amantes a abortar, quebrou o braço de sua mulher, tirou o filho da escola, tudo no mesmo ano. Bernardo, 39 anos, colocou remédio para dormir na comida da mulher, a estuprou e espancou para que ela não contasse a ninguém. Bernardo, 43 anos, mentiu no trabalho, bateu no filho mais velho até ele desmaiar, desviou dinheiro da empresa. Bernardo, 55 anos, corria na estrada, sofreu um acidente que matou sua filha mais nova, ficou cego. Bernardo, 56 anos, foi largado pela mulher, morava sozinho, ficou com anemia. Bernardo viveu como pode e como quis até os 55 anos. Parou de bater. Ao matar a própria filha em um acidente de carro, ficou cego de nervoso. Parou de viver. Não tinha mais ninguém ao seu redor, definhou. Parou de mentir. Não sabia mais onde estava. Quando completou 76 ano...

Curtas lembranças sobre um curto casamento

Estava na hora de ser um pouco repetitivo, querida. Lembro-me tão recente como você costumava chorar ao cortar as cebolas, suas lágrimas ainda estão em minhas mãos. Sempre achei que as cebolas fossem uma desculpa para você não jogar tudo em cima de mim, na verdade sempre soube disso. Você se mantinha sempre quieta em nossas refeições e temia a mim. Querida, aquele tapa foi só uma vez, foi só uma cerveja a mais no bar, foi só um descuido. Nunca quis machucar você. Eu sempre quis te dar o amor puro, terno. Lembro-me tão intensamente como seus olhos vinham sempre de baixo, como uma reverência. Ainda que tivéssemos a mesma altura, meu bem. Sempre achei que fosse uma maneira de me fazer sentir bem, sentia-me assim. Você nunca me desafiou, sequer num olhar, amor. Eu adorava quando você me olhava bem de baixo, ainda que escorressem umas lágrimas, ainda que sua feição não fosse das melhores, meu amor, que prazer. Eu sempre quis te dar prazer! Lembro-me tão feliz como você nunca me pergunt...

Curto relato sobre um domingo

Tinha areia nos peitos, um outro punhado na boceta e gosto de mar colado pela pele queimada. Os sentidos se confundiam e não sabia se era paz ou se era vento o que batia em sua alma. Entre um bocado de pedras sentia como era ser realmente íntima de alguém, sem a necessidade de fingir e fugir do que se é. Despertou algumas vezes naquele domingo. Transitar entre o sonho e os olhos abertos era bom de igual maneira, mas a irrealidade do dormir a convenceu de que acordar era mais interessante. Diferente de outros contatos, realmente se interessava pelo que tinha com aquele corpo e, quem sabe, com a alma que dormia ao seu lado. Tudo era distribuído de maneira que amaciasse quem o olhava. Não soube se por alegria ou por comoção deixou que uma trilha d'água escorresse por seu rosto. Sorrindo, secou-se e acordou o outro alguém. Beijos sonolentos, toques de mãos ainda adormecidas e a prazerosa sensação de sentir-se quista e de querer bem a alguém, por dentro, por cima. A comida perdia...

Ser em outro olhar

Costumava pontuar cada afirmativa, explicar toda existência com alguma palavra, pelo menos. Era assim que me afirmava como eu. Uma mulher qualquer, que não gostava desse eu, disse para um alguém “Que ela guarde as opiniões dela para ela, quem as quer saber?”. Pensei: Quem algum dia quis saber, realmente?. O silêncio mostrou ser muito atraente desde então. Guardar tudo dentro de mim é um caos, mas não incomoda mais ninguém. Fiquei “alheia de mim” e “presente no mundo”, mas, ao contrário de Camus, senti-me rasa, cada vez mais rara na existência terrena e presa dentro de uma mente com vazios cheios de perturbações. Pensar no eco intrínseco ao silêncio me traz o questionamento de como soo aos olhos dos outros. Pareço ser desprovida de conteúdo, forma ou verdade? Se me acham mentirosa, não sei, mas quantas verdades me foram roubadas e assim mudaram em mim algumas certezas essenciais de lugar? Me mudaram de caminho. Quanto à forma, é tão evidente que não tem graça e as pessoas que medem alg...

O coração que nunca bateu

Nos últimos dias, já não lembrava mais se o rosto redondo era da dona do nariz torto. Ou se a arrebitada e deliciosa bunda era da morena ou da velha. Tinha dificuldades em lembrar nomes, ainda que guardasse lembranças misturadas de mulheres desconhecidas.  Não era importante o rosto, a troca, ou quais os gostos e desgostos das escolhidas. Era mais pelo gosto do cheiro e pelo cheiro do gosto. Era pelo toque sem contrato. Pelo vazio tão prazeroso de se provar de tudo. Tentava se enganar, vez ou outra, mas nunca resistiu ao conforto que o descompromisso propicia.  O charme e a lábia criaram ao seu redor encanto suficiente para convencer os outros de um coração que não tinha. E mesmo assim era cheio. A vida foi plena, quantos peitos, sorrisos, formatos, tamanhos, cores, quanta variedade, que não deixaram marcas, mas passaram. Não tinha história para contar, tinha casos, que já eram mais um amontoado de lembranças misturadas que acontecimentos em si.  Foi um velh...