O coração que nunca bateu



Nos últimos dias, já não lembrava mais se o rosto redondo era da dona do nariz torto. Ou se a arrebitada e deliciosa bunda era da morena ou da velha. Tinha dificuldades em lembrar nomes, ainda que guardasse lembranças misturadas de mulheres desconhecidas. 
Não era importante o rosto, a troca, ou quais os gostos e desgostos das escolhidas. Era mais pelo gosto do cheiro e pelo cheiro do gosto. Era pelo toque sem contrato. Pelo vazio tão prazeroso de se provar de tudo.
Tentava se enganar, vez ou outra, mas nunca resistiu ao conforto que o descompromisso propicia. 
O charme e a lábia criaram ao seu redor encanto suficiente para convencer os outros de um coração que não tinha. E mesmo assim era cheio.
A vida foi plena, quantos peitos, sorrisos, formatos, tamanhos, cores, quanta variedade, que não deixaram marcas, mas passaram. Não tinha história para contar, tinha casos, que já eram mais um amontoado de lembranças misturadas que acontecimentos em si. 
Foi um velho lindo, sem rugas, sem mágoas, um homem sem preocupações, sem arranhões e sem inimigos. Amou tantos e tanto - que não se lembra de ninguém- que nunca deu forma, tampouco permitiu que alguém desse, aos sentimentos que guardou em um lugar qualquer.
O vento estava recolhido naquela tarde vazia e só o silêncio acolheu o corpo que jazia ao lado do coveiro que, impaciente, esperava alguma visita que nunca chegaria. Seu nome também não marcou ninguém.

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