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O coração que nunca bateu

Nos últimos dias, já não lembrava mais se o rosto redondo era da dona do nariz torto. Ou se a arrebitada e deliciosa bunda era da morena ou da velha. Tinha dificuldades em lembrar nomes, ainda que guardasse lembranças misturadas de mulheres desconhecidas.  Não era importante o rosto, a troca, ou quais os gostos e desgostos das escolhidas. Era mais pelo gosto do cheiro e pelo cheiro do gosto. Era pelo toque sem contrato. Pelo vazio tão prazeroso de se provar de tudo. Tentava se enganar, vez ou outra, mas nunca resistiu ao conforto que o descompromisso propicia.  O charme e a lábia criaram ao seu redor encanto suficiente para convencer os outros de um coração que não tinha. E mesmo assim era cheio. A vida foi plena, quantos peitos, sorrisos, formatos, tamanhos, cores, quanta variedade, que não deixaram marcas, mas passaram. Não tinha história para contar, tinha casos, que já eram mais um amontoado de lembranças misturadas que acontecimentos em si.  Foi um velh...

Fica na alma

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Não lembro mais quando foi a última vez que me peguei sorrindo numa conversa séria. Sorrindo com a dança que as palavras faziam quando ele escrevia. Talvez porque não conheço ninguém que consegiu usar tantas palavras certas juntas, como ele fez. Eu sempre preciso de alguém que me lembre "a peleja é longa, a batalha é sempre", mas só ele colocava as coisas desse jeito.  Apesar de tudo que me disseram ao longo da vida, nunca estarei pronta para lidar com a morte. Ainda tenho muita dificuldade em aceitá-la, mesmo depois de um ano, nove meses e vinte e seis dias, sinto tanta falta! Queimam os olhos e aperta a alma as lágrimas que a ausência dele me traz. A voz ecoa na memória, traz o cheiro do perfume caro, que não era mais marcante que seu cheiro. Tem ele em tudo e, ainda assim não tenho mais... A secura e o vazio do silêncio tomaram o espaço das suas palavras doces e macias, que acariciavam todo o meu corpo até acalmar o coração e me arrancar toda alegria possível. Eu detesto s...

Personalidade

Era um mendigo, todo fodido, mas ele sorria. Outrora fora um homem ou menino, mas hoje... Já não sabe mais o que é. Nome não tem. Teve algo de belo que tornou lento, mas certo, o caminho para a desgraça em que caíra. Longa história, fica para próxima. Pediu-me, como a todos os pedestres anteriores, dinheiro: - Não vou mentir não. É pra cachaça, se você me der o dinheiro ele passa a ser meu e o que é meu eu gasto como bem quiser. Vai dar? -Você me pegou num dia ruim Abri a carteira, não achei nada, sabia que tinha dinheiro em algum lugar. Achei um bolinho no bolso que não me incomodei em conferir, só entreguei. Peguei na mão dele e, com ternura e sinceridade, disse: -Espero que te faça muito feliz. -Vai me completar, Deus abençoe, moço. As pessoas acreditam que a benção de Deus acolhe e afaga a alma de quem parece devastado. Desejam com falsidade ou sem intenção, na esperança de que soe como lisonjeio. Continuei andando. Apesar de ter nome, endereço, CEP, te...

Saudade

A casa vazia ecoava sua respiração. Cada lugar que pisava trazia à lembrança situações e problemas que teve em distintos momentos. Sentia-se confuso com a falta que memórias inventadas faziam. Estava ligado àquela casa por situações queridas, mas que não sabia até onde eram reais. Com a recente perda de sua companheira, resolveu que não era mais justo consigo mesmo continuar num lugar tão grande e apertado como aquele, continuar tão sufocado. Mudou-se de casa, de jeito, hábitos, de vida. Pensou em se matar, em fugir, achou que a perda de identidade momentânea dava-se devido à privação que se obrigou a passar. Tinha plena consciência de que sua carência estava transformando-o em um ser irreconhecível. Seguia remoendo tudo o que deixou passar, tudo o que não fez e tudo que se arrependeu. Era perda de tempo, sabia, mas de certa forma, acreditava que alguém acompanhava seu esforço em manter a mulher viva e admirava. Não queria mais ser notado, não queria mais sentir, limitava-se a se al...

2:49, pausa, volta a dormir

São duas e quarenta e nove da manhã. Um longo barulho interrompe meu sono e perturba minha inquietude. Do meu lado, um estranho que escolhi amar, dorme. O vento está rápido e tão marcante quanto o agitado sonho que meu companheiro parece ter. Estou sendo esmagada, aos poucos, pelo fino lençol que cobre meu corpo. Já não me atrapalha mais o peso do sono nas minhas pálpebras, tampouco o som do silêncio. Não consigo dormir. Tive um longo dia comum.  Todo meu corpo está cansado. Por maior que seja a minha vontade de dormir, tenho dificuldades em me desconcentrar de todo o resto. Os pratos sujos na pia da cozinha gritam. Dos vidros sebosos do boxe ainda escorrem gotas do meu banho recente. Os fios soltos da barra mal feita da cortina chacoalham com uma leve corrente de ar que invadiu o quarto e tocou meu rosto, esfriou. Levanto, o assoalho frio é convidativo, sento-me no curto corredor e especulo sobre futuros que nunca aconteceram. Soa uma aguda buzina de caminhão que ecoa no meu estôm...

Perfil

Sempre foi muito charmosa, nunca chegou a ser bonita. Com bom senso de humor e de organização,não tinha um nome fixo. Os peitos eram macios, pequenos, levemente arrebitados. Os cachos negros escoriam na cintura e caiam-lhe muito bem. As unhas eram curtas para não correr riscos. Era muito branca para ser negra, muito morena para ser branca, pouco amarela para ser asiática, nada jeitosa para ser mulata, era tudo e nada, meio manchada. A boceta não a deixava mentir sobre seu ofício. Usava um perfume forte demais para o verão, enjoativo e marcante . Os olhos caídos e sorridentes acentuavam sua confusa cara cansada. As pernas, compridas e suculentas, eram sua principal armadilha. Atendia telefones e respondia mensagens muitas vezes ao dia, todos os dias. Das perguntas já não esperava nada novo. Há muito respondia 27, quando perguntada sobre sua idade, optou por não envelhecer. Era imune aos olhares tortos das que se achavam mais dignas, ou mais mulheres que ela. Aprendeu a ser atraentem...

Homem das cavernas

Às vezes lembrava-se da infância, era até que um refúgio bom : Pegava água no rio, com uma lata velha da Coral, todos os dias. Corria com os irmãos. As vizinhas ricas compravam bonecas de pano - que ele roubava de suas irmãs - e assim conseguia comprar doces de vez em quando. Pulava o muro do quintal para roubar mangas de Dona Serafina, que fingia não sentir falta e sempre dava mais frutas depois. Sua mãe, empregada doméstica, teve sorte com seus empregadores: Dr. Romeu e Dona Marta doaram a biblioteca usada de seus filhos - agora grandes- o que estimulou muito os estudos dele e de seus 3 irmãos. Formaram-se todos em medicina no final das contas, ele não. Em uma data comemorativa de Livramento, levava a irmã em um carrinho de mão e, ocupado com a felicidade que o sorriso dela lhe proporcionava, não notou a pedra no caminho. Capotou, nas ruas de paralelepípedo, e viu o sangue escorrer pela testa de sua pequena protegida. Não via, mas demorou a esquecer o toque do fio de cobre que es...