Saudade

A casa vazia ecoava sua respiração. Cada lugar que pisava trazia à lembrança situações e problemas que teve em distintos momentos. Sentia-se confuso com a falta que memórias inventadas faziam. Estava ligado àquela casa por situações queridas, mas que não sabia até onde eram reais. Com a recente perda de sua companheira, resolveu que não era mais justo consigo mesmo continuar num lugar tão grande e apertado como aquele, continuar tão sufocado. Mudou-se de casa, de jeito, hábitos, de vida.
Pensou em se matar, em fugir, achou que a perda de identidade momentânea dava-se devido à privação que se obrigou a passar. Tinha plena consciência de que sua carência estava transformando-o em um ser irreconhecível. Seguia remoendo tudo o que deixou passar, tudo o que não fez e tudo que se arrependeu. Era perda de tempo, sabia, mas de certa forma, acreditava que alguém acompanhava seu esforço em manter a mulher viva e admirava. Não queria mais ser notado, não queria mais sentir, limitava-se a se alimentar do passado.
Tinha o constante sentimento de perda, mas de uma forma confusa, algo além de sua mulher. Sentia que havia se perdido de si mesmo. Ricardo era vazio. Não tinha mais como completar sua rotina, que mais parecia um constante vácuo. Era impaciente, não conseguia mais fazer nada. Queria ver o tempo passar. A televisão não passava, a hora não passava, as pessoas na rua não passavam. Sentia-se uma pessoa escassa, na verdade não sentia mais nada. Ficou assustado, viu o reflexo no espelho. Viu como a perda de cabelos deixou evidente em sua testa caminhos que nunca traçou. Uma pessoa que não tinha gostos, desgostos, talvez nem gosto mesmo, insosso.
Com o tempo se preocupava apenas com perdas financeiras, não percebia mais, estava completa sua mutação. A desaparição do homem rosado e sorridente não foi grande perda para vizinhos ou para o mundo, ninguém notou, nem ele. Adaptou-se a saudade como um jeito de viver. Voltou a casa antiga, arrastou o saco, já não mais tão pesado como quando colocado no porão. Quando o cheiro invadiu o cômodo, em nada lembrava o perfume do amante que a mulher carregava na noite em que foi esfaqueada por Ricardo.
Lavou as mãos pra tirar o cheiro, se molhou pra limpar o corpo e tomou banho de perfume pra esconder a podridão da alma. Em vão. Não ia deixar a perda de seus valores interferia na memória de sua mulher: levantou cedo todos os dias seguintes, mas não acordava... Seguia reto, mas é todo torto.

Comentários

  1. mais, mais, escreve mais, por favor!

    -
    simplesmente amo suas palavras!

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