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Meu corpo, meu amor

Começou nova, mas tarde em uma profissão em que 30 é idade para se aposentar. Estava sem perspectivas e acreditava que vender o corpo era a única opção para quem não tem mais opção nenhuma. A rotina era mais cansativa do que a dos outros. Repetia, no mínimo, 50 vezes a mesma coisa, todos os dias de toda semana em todos meses do ano inteiro. Convencia muito menos da metade dos que ouviam-na. Considerava-se uma ninguém, com a esperança de construir algum caráter com o dinheiro. Às vezes, perguntava-se como a vida escolhia o destino de cada um. Se tivera azar ou sorte em ser e viver o que era, ainda não sabia. De qualquer forma não podia se queixar, tinha como se virar, tinha beleza suficiente para exigir um extra dos clientes. A boceta ardida era um contra, seu ponto fraco, logo sua fonte de renda... Cristina se apresentava como Marcela, a puta perfeita. Fazia tudo. Sentia-se bem em ser objeto de desejo para alguém, excitava-a. No começo tinha medo. - Você sabe que um dia vai ser f...

O som do silêncio

Sempre dormi com o ventilador ligado. Acordei com os gritos de minha mãe e , mais tarde, com os de minha esposa. Vivi com o som da cidade. Estamos em tempos difíceis, secos, de racionamento de energia, mas eu não ligo. Só quero dormir. Dia longo. O ventilador é uma canção maravilhosa para mim. Em um estalo parou e nada liga "Merda", é a porra do apagão. Minha esposa não notou, dorme. Percebo o que realmente é o silêncio. A respiração de Camila é alta, o estalo dos tacos no chão é alto, o silêncio é alto. Vou  até a cozinha, a luz não acende, mas o interruptor estala, a porta da geladeira, a tampa da garrafa, a cadeira em que esbarro; Ouço meus movimentos, todos. Nada é mais alto, porém, que os gritos, meus pensamentos gritam. Eu quero dormir, mas o silêncio é ensurdecedor. Traz a tona coisas que eu não lembrava existir e que me incomodam.  Já tem uns 2 anos que a Marjorie tá aqui, vagabunda.  Por que Camila deu abrigo pra prima?  Como isso me atormenta. Ela t...

Visceral

Não tem nada que me agrade mais do que pensar nele. Eu vejo a gente numa sala com janelas grandes. Não dizemos que nos amamos ou odiamos, não sentimos nada. Eu estou com calor, a presença dele faz isso. Discutimos sobre tudo um pouco, sobre nossos olhares. Ele tem uma boca linda, fico molhada só de pensar nela... Ele sorri, como se lesse meus pensamentos. Sai da cadeira e vem para o meu sofá. Faço do meu corpo um convite, que ele aceita. Apesar de querer tudo de uma só vez, começa pelas minhas coxas. Me senta em seu colo, me ajeita, me encara, me beija. Transamos devagar e rápido e pouco e muito. O nosso desejo faz com que a gente queira consumir ao máximo um ao outro, sentir tudo o que podemos nos dar. A gente cansa, não quer parar, mas cansa. Senta cada um em uma ponta do sofá. Ele fuma, eu olho. Por um longo tempo a gente só se olha, conversa nunca foi nosso forte. Ele então diz... Fernanda não sabe que ele ia dizer, acordou com o despertador. Queria mais, ele estava...

Os aromas do natal

Dia 24, estava há três dias alternando entre arrumar, limpar a casa e fazer comida. Apanhou de manhã. Toda data comemorativa seu marido arranjava um motivo para encrencar, cheirava a café. Seus dois filhos... Ah, seus dois filhos eram uma desgraça. Para cada cômodo arrumado eram três que eles bagunçavam. Não tem paz. Sempre se perguntava o porquê de continuar comemorando o natal em sua casa ano após ano. Abriu o armário, o cheiro das panelas é nostálgico. Remete a um tempo em que não viveu, mas lembra-se bem. Talvez até tenha protagonizado essas lembranças, mas só as lembra de fato porque sua mãe contou. A criança em cima da pia, sentada. Observava atenta à mãe, suada, amassando um pão. Abria um armário, mal instalado, ao lado do fogão e um cheiro forte de ferro, lata -não sabia bem- subia, contrastando com o cheiro quente e gorduroso do peru, que já havia tomado toda casa. Ela queria ser habilidosa como a mãe, que enfeitiçava todos com aqueles cheiros, mas não tinha te...

João raso: Tudo e nada

João, gostava de romances, mas não gostava de amar. Tudo em sua vida era mentira. Seus estudos, suas namoradas, seus trabalhos. Mentiras que, com o tempo, não tinham força para se sustentar e acabavam. Projetava-se através de sua imagem. Acreditava ser interessante graças a objetos: o cigarro era seu charme. O relógio era para ver se a hora passava, queria chegar logo, só não sabia onde. Suas roupas eram o enfeite, ele a árvore de natal, mas faltava alguma coisa. Ainda assim vivia. Às vezes pensava em ter propósito para tudo. Pensou em comer a barata da Clarice, mas não gostava de contos, achou que não faria sentido. Pensou em ter uma namorada, mas dava muito trabalho. Pensou até em ter um cachorro, mas já tinha um e não teve seu problema resolvido. Tentou ler: coisas que não tinha sentido, com gente que não existia e histórias que nunca aconteceriam. Queria continuar lendo, queria achar sentido, mas não gostava. Uma paixão que ardesse na carne, que sugasse toda ...

Amor demais

Era mais um daqueles dias, difíceis de viver. O alvorecer, quente e alaranjado, deixava tudo mais cansativo que de costume. Tenho a impressão de estar num faroeste urbano, lutando pra ser o cowboy, mesmo consciente de que sou o bandido. Eu não sei bem por que levo a vida que levo, mas até aí... quem sabe? Não é por falta de sorte, isso não é justificativa para ninguém. Foi a falta de propósito mesmo, ou incentivo, mas que se dane. A Mariângela me espera toda noite com uma janta fria, café morno e o corpo quente. Me canso, mas não aprovaria se ela mudasse os hábitos. Nos sustento fazendo a segurança de uma casa, não sei o que tem lá. A instrução foi "Se alguém chegar perto você nos avisa, perto demais você questiona, se tentar entrar sem a nossa permissão, você arrebenta.". Assim eu fiz. Foram poucos os que precisei bater. Melhor, não gosto de briga. Não tenho muito o que fazer lá. Vez ou outra aparecem uns tipos bem vestidos, vida boa, segue um padrão o estilo de...

A vaidade - I

Lurdes saltou da cama. Rapidamente vestiu a roupa que estava pendurada na cadeira, amarrou os cabelos curtos num rabicó, alto e mal feito - estava atrasada, esqueceu-se dos grampos - tomou um café requentado e saiu, correndo, para o ponto de ônibus.  Joana não estava muito disposta naquela manhã. Sentou-se e escovou demoradamente os cabelos enquanto conferia se tudo estava no lugar. Ela não sabia ao certo se seu medo era de "derreter" ou se um dia Deus ia castigá-la por ter mudado tanto o próprio corpo. Logo esqueceu e voltou a escovar com mais intensidade os longos fios dourados até obter a composição perfeita e desejada. Conferiu as horas e ficou impaciente, 10 e meia e sem café. Ia escolher a roupa para a noite quando a porta abriu e uma bandeja anunciava a chegada de Lurdes, meia hora atrasada. - Você é debil mental? Atrasa meu café, não bate na porta e traz pão com queijo! É sério isso? Você quer perder o emprego? Sorte sua que sou muito boa. Olhava para ...