Amor demais

Era mais um daqueles dias, difíceis de viver. O alvorecer, quente e alaranjado, deixava tudo mais cansativo que de costume. Tenho a impressão de estar num faroeste urbano, lutando pra ser o cowboy, mesmo consciente de que sou o bandido.


Eu não sei bem por que levo a vida que levo, mas até aí... quem sabe? Não é por falta de sorte, isso não é justificativa para ninguém. Foi a falta de propósito mesmo, ou incentivo, mas que se dane.

A Mariângela me espera toda noite com uma janta fria, café morno e o corpo quente. Me canso, mas não aprovaria se ela mudasse os hábitos. Nos sustento fazendo a segurança de uma casa, não sei o que tem lá. A instrução foi "Se alguém chegar perto você nos avisa, perto demais você questiona, se tentar entrar sem a nossa permissão, você arrebenta.". Assim eu fiz. Foram poucos os que precisei bater. Melhor, não gosto de briga. Não tenho muito o que fazer lá. Vez ou outra aparecem uns tipos bem vestidos, vida boa, segue um padrão o estilo de quem frequenta a casa. Mas não me prendo muito a isso...

Com o indicador fez sinal para que me aproximasse. Quando estava próximo o suficiente ela passou a língua pelos meus lábios e disse:

- Gosto do teu gosto...
Ah, Mariângela, que coisa é você. Me deixava incendiar com sua presença, mas não queria que ela notasse, vaidade ou insegurança, não sei. 

Uma vez um moleque chegou perto da casa, não tive tempo de avisar, desci o cacete. Coitado, ia me pedir informação. Melhor, eu não sabia onde era a rua mesmo. Eu, às vezes, queria saber o que os grandes muros cinza escondiam, mas sempre achei a ignorância uma benção, melhor só segurar a casa e ganhar minha grana, certo como um e um são dois.


Maria reclamava do nosso colchão, mas eu não podia dar um salário inteiro por um capricho. A gente tinha que comer, tomar banho e essas coisas fundamentais para se manter são... Já tínhamos um colchão, um pouco duro, mas que não nos privava de nada, tava bom. Nosso caso é meio estranho. Eu devia ser o cigarro dela. Morríamos, pouco a pouco, juntos. Ela me queimando a cada trago, eu sendo uma droga na vida dela.


Acordei mais cedo que o necessário, mas não muito. Mariângela ainda dorme. É engraçado o esforço que tenho para fazê-la feliz, não adianta, acho. Eu adoro o cabelo dela, aliás eu adoro tudo nela. Está de costas, ignora que outro corpo esteja na cama dela. Vou acordá-la. A gente transa em silêncio, a vizinha tá acordada e a parede é fina demais para gemidos. Ela me beija e me manda pro trabalho, que merda. Não tinha café, só uma rachadura na parede da cozinha. Eu já estava de saída:

-Dimas!
-Que?
-Traz coração de galinha hoje, to com vontade.
-Tenho um aqui, de cachorro, quer?
-Esse eu já to enjoada, vai logo, e não esquece!


Era mais um daqueles dias, difíceis de viver. O alvorecer, quente e alaranjado, deixava tudo mais cansativo que de costume.Tenho a impressão de estar num faroeste urbano, lutando pra ser o cowboy, mesmo consciente de que sou o bandido. Expectativa de grandes mudanças, meu salário não me permite ter. Não posso esquecer do coração de galinha, vou anotar na mão mesmo.


Trabalhava num bordel, o mais caro da cidade. Precisei morrer para descobrir. Amarrava o cadarço quando tomei tiro na cabeça. Quem me matou foi um dos frequentadores. Em suma, se apaixonou por uma das moças, que não o levou a sério. Saiu furioso, voltou no mesmo dia, atirou entre as pernas dela e seguiu, matando quem estava dentro da casa, deixando-me para a despedida.


Quem passou por lá aquele dia viu um corpo coberto por uma lona preta, com a mão esquerda para fora, aberta, com um lembrete "coração da Maria". Irônico, amei demais e morri por amor de menos.


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