Não quero mais visitas do passado

 L. mentiu, traiu, manipulou, bateu, vezes tantas que não tenho dedos suficientes para manter a conta. Hoje, após quase 4 anos, eu começo a associar a gravidade do que me aconteceu. Só recentemente porque agora existe alguém com quem construo algo, com respeito, calma e atenção. Ao ver alguém genuinamente interessado em mim, consigo estabelecer uma régua e percebo: carrego esse massacrante e dolorido peso dentro do meu peito. Dor que se acentua quando me vejo duvidando do presente. Me sinto pequena e impotente ao não ver tempero nas palavras que digo, valor na minha companhia ou necessidade da minha presença - resquícios do sociopata que tanto me violentou.
 
 Comecei a escrever porque, esperando pelo trem, tive um ataque de pânico. Caí em um choro copioso e apertado. Dor de uma violência que não acontece mais. Segue, entretanto, agonia intensa ao ainda reverberar na minha cabeça, apesar da inexistência de seu provocador, mostrando o pouco controle que tenho no quanto ele e suas sobras ainda podem me assombrar.

 Meu corpo é forte, mas é frágil. E eu deixei que tanto acontecesse a ele. Meu corpo, que eu passei a odiar, era o saco de despejo das inseguranças, frustrações e ódio dele por tudo. Tantos hematomas tive por anos, que passei a quase acreditar que minha pele era roxa. Ainda enxergar com os dois olhos é um milagre. Tem pedaços vazios no meu couro cabeludo, mas não era assim quando eu nasci. Se hoje acredito em sorte foi porque não peguei nenhuma DST. Diante de outras agressões que ora eu esqueço, ora eu sinto, mas tive sorte de não ter marca delas. Por mais trágico que soe, o meu físico foi o que menos sofreu. 

 Se perder de si ao ponto de não saber quem se é foi o sinal da tortura cruel a que fui submetida. Não haverá nunca justiça na violência. Na minha não seria diferente. "Ser eu" está gravado na minha mente como algo errado, insuficiente e incômodo. Eu era tudo quando era serventia, mas constantemente lembrada de quão descartável sou. 

Fala, sufoca. Não fala, é puta.
Conversa, sufoca. Não conversa, é puta.
Faz, ninguém pediu. Não faz, é puta.
Quer companhia, é carente. Não quer, é puta.
Liga, é possessiva. Não liga, é puta. 

 No trabalho, que eventualmente larguei, eu supostamente estava interessada em todos os homens, até cair no choro, exausta, tentando encontrar jeitos de provar o que não tinha acontecido, para só então ouvir, num tom doce, quase inocente “como você é dramática, mo, só estou brincando”, como se o tom hostil e quase ameaçador não tivesse sido gritado até segundo antes para a “puta”.

 Gestos, dos pequenos aos grandiosos, privados ou públicos, sempre um problema, fora que ele nunca tinha pedido e eu, aparentemente, fazia porque queria marcar território, mas se não fizesse, talvez estaria fazendo pra outro, afinal, eu era "puta". A minha ausência, por respeito ao espaço alheio, sempre significou que eu deveria estar ocupada com algum outro alguém. A presença demonstrava que eu era insuportável, sufocante, desconfiada, doida. Em quase 5 anos eu nunca conheci nenhum amigo dele, perdi todos os meus, sem exceção. Foi tudo tão sutil. Eu me sinto muito burra por mesmo vendo não ter enxergado. Os estudos, os amigos, minha família, minha casa - o mundo estava contra ele e eu precisava escolher, naturalmente, apesar dele nunca ter pedido, e larguei um por um. 
 
 Tem tanto. Tem tanta dor. Acho que o pior vem no sentimento de impotência diante da visita de uma pessoa que eu não conheço mais. Diante do fato que eu não tenho o menor controle em como vou me sentir, me peguei hoje, pela primeira vez, sentindo palpitações e angústia profunda, sem saber como me acalmar ou curar isso. Talvez o tempo e a compreensão que nem sempre a gente aprende as coisas certas de primeira me ajudem a largar mão de tanto pesar.

 Não é justo que o causador de tudo isso seja feliz, sem a menor sombra de tudo que fez enquanto eu, que realmente não fiz nada de errado, precise lidar com toda essa carga. Eu só quero respirar em paz, viver em paz, ser em paz. Não existe nada que aconteça com ele que possa reparar o que eu carrego. Vingança não é remédio, não altera o passado e não muda o presente. 

 Eu quero sentir todo amor que tenho sentido, livre de comparações com gestos tirânicos do passado. Eu quero me ver livre de alguém que foi muito além do tempo que deveria ter sido. Eu sou infinita, mas na faceta de vítima eu quero por fim. Eu sinto um mundo todo dentro de mim. Agora eu sinto raiva, mas só agora, porque amanhã eu quero me sentir como eu mesma, com o amor tranquilo, que me ajudar a ser ainda mais eu*.

*Se você não pode ser quem é em qualquer que seja a relação, se retire. Não se coloque em caixas que não têm a medida certa para você. Busque ajuda, mesmo quando difícil. Somos universos bonitos demais para sermos limitados pelas restrições de pessoas cruéis.

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