Sufocou-se de si

Osvaldo levanta cedo todo dia, mas não acorda. Vai para o trabalho às 8h, mas não está lá. Come no boteco do lado da empresa, nunca se alimenta. Pega o carro e, na volta pra casa, liga o rádio, mas não ouve. Todo dia come a mulher, mas não sente. Segue reto, mas é todo torto.
Osvaldo trabalha com seguros. Vende seguros de vida, que não salvam ninguém e não trazem a vida de volta, caso a pessoa não goste da morte, só segura uma coisa que não tem reembolso se perdida. Ainda assim ele vende, ainda que não acredite. Sempre faz o que sua mulher manda, apesar de achar tudo errado e não ter vontade de fazê-lo.
Osvaldo tem dinheiro, boa casa, bom carro, boa família, ainda assim é vazio.
Osvaldo passou toda vida procurando as vantagens de viver, convenceu-se então que se tem vantagem também tem desvantagem, preferiu viver sem os dois. Seguiu o curso natural, evitou fazer escolhas o máximo que pode, deixava tudo pra sua mulher, Vivian.


Atrasou-se, certa vez. Acordou às 11h, perdeu-se de seu hábito, tinha um dia livre.

Não sabia bem o que fazer. Sentou-se, esperou bastante tempo, encarou o relógio 11h03.
Nunca soube o gosto da comida de sua casa, esperou pelo almoço vendo televisão. A tv não passava, a hora não passava, o homem na rua não passava. Osvaldo pensou em ler um livro, mas só pensou, o medo de não entender nada foi muito grande. Viu uma barata, esmagou-a, sentiu-se forte.
Correu pela casa, andar de cima, andar de baixo, andar de cima, andar de baixo, andar de cima... olhou as horas 11h10. Correu mais um pouco e parou na frente do quarto. Ficou assustado, viu o reflexo no espelho.

Não se lembrava de como conheceu a mulher ou como começaram a namorar. Não se lembrava por que a pediu em casamento, por que transformou sua vida na grande lástima que ela era pra sustentar uma mulher que achava bobagem o amor e tratava a vida como um grande plano.  Viu um homem velho, com caminhos na testa. Viu um homem marcado pela ignorância de si mesmo. Viu mãos calejadas de carimbar seguros para a insegurança alheia. Uma pessoa que não tinha gostos, desgostos, talvez nem gosto mesmo, insosso. Não sabia chorar, correu, ia se atirar do segundo andar, parou, queria morrer, não fazer alguns arranhões. Ligou pra Vivian, que atendeu surpresa - afinal, ele só ligava uma vez por dia, quando saia do trabalho - e perguntou: o que eu tenho que fazer? 
-O que você quiser, ué! Mais tarde chego, beijos.

Aquilo foi a (única) epifania da vida dele. O que ele queria? Durou muito - pra ele -15 segundos no relógio. Tomou uma decisão - primeira e única sem Vivian - foi a farmácia, comprou Rivotril, voltou pra casa. Tomou 2 comprimidos, por precaução. Dormiu e levantou na manhã seguinte às 6... Lavou as mãos pra tirar o cheiro, se molhou pra limpar o corpo e tomou banho de perfume pra esconder a podridão da alma. Em vão, não se esconde o cheiro do vazio que ecoa por onde o corpo passa. E, como todos os dias, levantou cedo todos os dias seguintes, mas não acordava... Seguia reto, mas é todo torto.

Comentários

  1. Muito Bom!!
    Gostei bastante, o final foi bem poético!
    Parabéns!!

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  2. Niilista, poético, frio.
    Não desenvolve uma história, mas sim uma crítica. Não é meu estilo favorito, mas belamente executado.

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