Dicotomias

Estava na rede. Todo mundo ao redor rindo, vivendo, vendo. Seu nome sai da minha boca como se sempre tivesse morado lá. “Quero beijar você”. Você sabe como me sinto, os outros todos também, mas você acha que não sabem. Não há nada que nos proíba, mas a validade que traz fazer as coisas às claras te assusta. Você me encara, meio surpreso, meio sorriso. “Onde?”. “Aqui”. Você se inclina e acaba por sentar, encaixado de lado entre as minhas pernas que estavam espichadas na rede. A gente se cabe direitinho. Eu amo tanto seu calor. Me sento, a gente se cheira, se alisa com o rosto e se beija. Todo mundo fica feliz. Dão risada “finalmente”, ouve-se de algum canto.

Eis que acordo. Correndo por um caminho todo perfeitamente pavimentado, às seis e meia da manhã, com uma canção não forte o suficiente para chamar minha atenção e um sorriso que atrai os raros pedestres da rua vazia. Tento me desvencilhar dessa inundação de sensações de um sentimento tão antigo e duradouro. Não misturo meus devaneios aos momentos reais - apesar de serem projeções dos nossos encontros. Desconfio, na verdade, que não deva ser amor isso que sinto -  não pode ser tão complicado assim ou, talvez justamente por ser, é que tanto penso. Tenho taquicardia frequente - toda sua. Passo pelas lojas, todas fechadas, finjo que por conta do horário, não do vírus. Corro. O cachorro me atrasa e me arrasta, sem ordem ou lógica definidas.

Não tenho fôlego para manter a constância, mas tento. Corro o mais rápido que posso para ver se me parto em duas. Se esse sentimento é só uma capa de poeira que, com a velocidade certa, cai de mim e fica na rua, caso alguém se interesse. Queria jogar no seu peito essa coisa que me preenche e saber que te faz tão feliz quanto a mim. Ou mergulhar em você e descobrir os mistério que me assolam, se existe espaço pra mim. Diante das impossibilidades, assumo que não é hora para nada disso no seu tempo. Nossas realidades diferentes não permitiriam que sua lente fosse de recepção a esse sentimento que muito provavelmente você não cultiva.

Já dei a volta no parque - a grama, o sol, o caminho de asfalto, o palácio - tudo cenário de um sonho que produzo acordada. Saio pelos portões, coloco a coleira no cachorro e nos pensamentos. Não adiantou correr. Continuo imersa nessa felicidade sem sentido de uma realidade rica, mas inexistente.
Ora esqueço a doença e assumo que quarenteno porque preciso afogar esse sentimento. Na verdade, pensando em corrida, é pouco o tempo que fujo em relação ao que cultivo e dano, em cativeiro, essas ilusões. Na volta para casa, passo em frente ao correio, tenho tantas cartas escritas, quanto não daria para adereça-las. Chego, tomo banho. Estou exausta. Doem as pernas, me causam certo prazer. Queima o corpo, que se ainda se acalma. Tem fim essa fuga? Em certo ponto os pensamentos e sentimentos finalmente definham e param de me perturbar?

Tenho duas quarentenas simultâneas e com propósitos dicotômicos. Mais um dia igual, presa dentro de uma casa ou de mim mesma. Me resguardo para seguir viva, isolo os pensamentos para matá-los. Matar os mundos que vejo, ainda que não viva, é um isolamento mais cruel? Sinto faíscas que não podem queimar - porque, há tanto, amo a pessoa errada. Quanto tempo pra morrer um sentimento que nunca viveu?

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