Percepções
Dos três partos, nenhum deixou marca
mais profunda que a da entrega. Carrega no rosto linhas acentuadas e no pescoço
uma corrente com três pingentes, um para cada filha. Ela tem cheiro de friagem
e as costas curvadas pelo peso invisível de uma vida sem ruídos, cheia de
gritos. É quase tão esguia como as estrias em suas costas, a mostra por um
descuido com o uniforme.
Apesar de não esboçar um sorriso, mesmo
quando lhe é dito um delicado ‘obrigado’, o olho esquerdo sempre responde,
ainda que sem querer, a qualquer interação - o tique nervoso a faz piscar quase
que sem parar. A
vontade de ajudar está sempre comprometida, não sei ao certo se por preguiça ou
pelo peso de tantas pulseiras nos braços. Tem a voz devagar, parece puxada com
muito esforço de um lugar de onde não deveria sair. Tenho a impressão de que
cedo ou tarde escorrerá entre as catracas e desaparecerá, derretida pelo chão
em que piso.
O escuro dos cabelos misteriosamente
reflete no vazio dos olhos e traz à tona o eco de sua alma. Sua presença é dicotômica
está lá sem estar, só é vista conforme a necessidade – quase sempre, quase
nunca. Interrompe-la é sempre um ato de coragem. Não é com conforto ou sem
pensar duas vezes que alguém pede alguma informação. Nunca achei que fosse
precisar, mas quem não tem dúvidas de vez em quando? Enquanto alterno entre me
desculpar e fazer a pergunta, seus olhos desinteressados penetram e queimam a
pele num tom de desaprovação. Além de atrapalhá-la em observar se alguém passa
junto em alguma das catracas, ou tem algum problema com o bilhete único,
obrigo-a a existir.
Ela me pede um minuto, entra pela porta
da salinha ao lado das catracas e diz a um rosto oculto, entre soluços,
"ele não me quer mais". Volta, sana minha dúvida e quase não é
perceptível a lágrima, que se escondeu na profundidade de uma ruga. O choro e a
mulher de agora existem pela mesma razão. A mulher é o que restou do amor: nada.
Talvez seja por isso que não a notam, talvez por outra coisa. É amarga e cinza,
a metroviária da Luz.
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